Publicado originalmente no Weebly em 29/04/2024
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Futebol é uma daquelas coisas que para mim não tem jeito.
O futebol, para mim, é um familiar enigma incompreensível. Um desagradável simpático e inevitável destino. Algo que gosto e em todos os aspectos. É um relacionamento abusivo por parte do Cruzeiro e do Deportivo e da Seleção, mas principalmente comigo mesmo.
Nos campinhos, nunca fui craque. Me contentava com a pré-determinada posição de zagueiro ou goleiro substituto. De vez em quando, lampejos de qualidade surgiam, mas me faltava o amor pelo jogo em si.
Mas a paixão de torcer, ah, essa sim, era visceral, um fogo branco que queimava em minha alma.
Em algum momento eu entendi sobre a maldição que me foi passada de ser um verdadeiro torcedor. Os prazeres e emoções são intensos, mas curtos. As frustrações são longas, doloridas e repetidas como um machucado que nunca se cura totalmente. Mas, mesmo nos piores dias, quando meu mundo parecia desmoronar, aquela rotina de chamar meu pai, meu irmão, botar a camisa do Cruzeiro, ligar a TV, com a rádio ligada por cima do som, porque meu pai não queria ouvir o Rogério Corrêa, pra ouvir o Alberto Rodrigues.
Naquele momento uma transformação mágica acontecia.
As palavras na rádio viraram realidade. Bola em Jogo, Alegria do Povo.
Lembro-me claramente da minha amiga Luiza comentando após uma solitária ida no Mineirão, sobre o quanto eu estava visualmente melhor, como meu estado de espírito tinha melhorado. Eu só conseguia pensar como aquele momento ritualístico ajudou.
Deve ter sido um dia como tantos outros. Uma coca pra não ir com a barriga vazia. No meio da torcida, seja lá em qual setor eu consegui ir, junto a estranhos durante 90 minutos. Choramos, entramos em êxtase nas comemorações, reclamamos juntos, cantamos juntos, e ali eu me torno mais um.
Após um Tropeiro do Mineirão no intervalo, espero aquela sua música favorita para gritar junto. Xingar o volante porque errou um maldito passe de dois metros, e saio. Feliz, ou triste, mas esvaziado desse estranho sentimento que pulsa nas minhas veias.
Herdei do meu pai a intensidade, como fogo que queima dentro de mim. Essa paixão, ao se misturar com minha essência, se tornou essa peculiar e estranha característica que de alguma forma, me define.

Eu e meu irmão no mineirão, lá pros idos de 2015.
O Cruzeiro está no sangue.
Não dá pra falar da minha história com o futebol sem falar do meu pai. Uma pessoa com hábitos estranhos, um sorriso fácil e uma cabeça irritantemente boa. É veloz no pensamento e ponderado nas decisões, fazendo um bom contraste com minha mãe, que é pé no chão, de respostas prontas, bons conselhos e um abraço quente. Ele é um homem prudente, dando tempo nas decisões até chegar em uma solução equilibrada.
Exceto quando falamos do Cruzeiro.
Assim que nasci, ganhei uma camisa “obrigado papai, já nasci Cruzeiro”. A família toda brigou com ele, mas imagino que ele nem ouvia os xingos, pois estava com um sorrisão no rosto, pensando quando “O Rafinha” ia entrar com os jogadores em campo.
Em histórias que ouço do meu pai quando mais jovem, sempre destacam sua impulsividade, como era reativo, meio maluco. Mas honestamente, eu nunca conheci esse homem. Posso até mentir que vejo flashes dele quando torce para nossa Raposa, mas na verdade, nunca teve nada disso, apenas carinho e amor na sua forte torcida. Sempre do seu jeito, com uma peculiar forma de viver.
Naturalmente, quando falamos do Cruzeiro, sempre é certeza de risadas, pois é de muita opinião, mas cheio de superstições e causos.
- Quais camisas podem ou não ser usadas em dia de jogo;
- Localização que podem sentar na sala;
- Localização que podem ver o jogo;
- Não confiar em jogador bundudo (sim).
A relação dele com o esporte é intensa. Mas hilária. Sei que ele foi parte de uma torcida que ele fundou do Cruzeiro lá pros meados dos anos 80, com minha querida avó Aideé lavando o bandeirão e botando para secar na janela do prédio na Zona Sul de BH, afinal, ele tinha que estar seco para o próximo jogo.
Um outro caso que mostra que não era só com Futebol que meu pai era assim, e suas paixões eram verdadeiras e intensas, é que ele teve que ficar de alguma forma proibido de ir registrar meu irmão, nascido em Outubro de 1994, para ele não se chamar Ayrton Senna. Meu pai era desses. Muito fã.
Eu por coincidência trabalho com uma réplica de capacete do Senna ao meu lado. Mas é só coincidência.
Porém os casos legais são os comigo já com memórias e um sentido de permanência, lembro de ainda morando no Pará, com cesta de basquete no fundo da casa. Em todos os jogos da Libertadores daquele ano, meu pai, quando ansioso, ia, com rádio no ouvido, ouvindo a Itatiaia, jogar umas bolas na cesta, para tentar aliviar a tensão verdadeiramente intensa que ele vivia com mais uma bola na trave do Henrique.
Mas em uma curiosa reviravolta, essa característica dele me inspirou profundamente.
Meu pai sempre sentiu o Cruzeiro de forma INTENSA.
Mas não despejou ela em outros. Apenas em si.
Nunca vi meu pai ligar pra um amigo atleticano para zoar, para mandar uma brincadeira. Ele nunca me mandou uma mensagem no Whatsapp com uma figurinha para humilhar um time, ele sempre lembra de ser respeitoso e “agir com os outros como gostaria que agissem com você”. Um ótimo conselho.
O máximo que ele tem, é o hábito que eu peguei de nunca chamar o time rival pelo apelido (afinal, o apelido é pra quem é íntimo), e pequenos detalhes, como nunca assistir jogo em casa de atleticano ou fora de casa.
– Dá um azar danado
Ele sempre falou pra mim. E eu acredito, ver jogo em casa de atleticano é certeza de zicar.

Eu e ele aí
Meus amigos e a evolução.
Como sempre morei longe de Belo Horizonte, a cidade do Cruzeiro, que era uma estranha forma de me conectar com meu irmão e com meu pai diariamente. Uma coisa que inclusive sinto muita falta. Torcer na minha casa era como um mini-estádio, uma energia que nenhum planeta vai conseguir repetir.
Mas voltando ao assunto, meu pai sempre foi muito respeitoso. E como convivemos com diversos torcedores, de intensidades e times distintos, aprendi rapidamente sobre como me comportar com os outros, o que era aceitável ou não, e vejo como isso foi basilar em criar a minha torcida de futebol, e como eu lido com essas frustrações.
Tenho um pequeno orgulho em perceber o quanto alguns amigos sempre fazem questão de falar comigo sobre o tema. Tento me manter informado, mas ainda tenho opinião o suficiente para criar alguma discussão, sempre mantendo todo o respeito nas conversas. Apesar de ser crítico comigo mesmo, tento nunca debochar das pessoas, mesmo daquelas que não conheço. E se houver algum erro, lembro-me de voltar atrás e me explicar. Afinal, a comunicação escrita pode ser um pouco dura e não transmitir a informação completa.
E com essa forma de pensar é natural que a amizade venha.
Alguns dos meus melhores amigos são profundamente torcedores, tanto que a idéia do texto veio por uma ação do Rafael Orsini, que eu tenho certeza que eu vou enviar o texto pronto pra ele, ansiando ele ler as várias partes que eventualmente vou comentar sobre nossa amizade, tem ainda os queridos da PokéShiny, que todos os dias temos nossas infinitas conversas, de forma que o Diddy e o DK me fazem gostar do Vasco, que o PH, o Choco e o PG me fazem gostar do Flamengo, o Chicão no grupo dos meus amigos de BH.
No fundo, sempre torço pela felicidade dos meus amigos.
Até os atleticanos, no fundo, eu sempre assisto e penso: “Ao menos eles estão bem.” Quase comprei o Manto da Massa que o Flávio venceu.
Quase.

Até porque, esse que vos fala já esteve TRAJADO com o Tricolor paulista do Vovô Dadado.
Aprender a Odiar
O futebol é uma coisa na vida que te ensina muitas lições valiosas. Torcer significa ter que lidar com o longo prazo, entender que nem tudo se resolve da noite para o dia e aprender a gerenciar a frustração que acompanha derrotas, quedas, entrega e momentos dolorosos. É também sobre saber lidar com o rival tripudiando sobre você, principalmente nos dias seguintes de uma chata derrota. Encontrar uma forma interna de lidar com isso é fundamental.
Mas existe uma característica que me preocupa, presente para qualquer um que acompanha o futebol de perto: a capacidade de odiar. Detestar o outro, detestar o rival, o inimigo, detestar e odiar o que diminui o seu time.
Quando eu era mais novo, um amigo cujo nome o tempo já apagou passou o dia me chamando de “maria”. Na época, não senti nada. Não era algo que me fizesse bem ou mal, simplesmente não entendia. E ele teve que me “ensinar” a odiar o apelido. Mas apesar de esse nome não me irritar, fui gradualmente ensinado a odiar várias coisas. Em 2010, o Atlético lançou uma camisa rosa e eu constantemente humilhava, diminuía e zombava sobre meus amigos atleticanos.
Por uma camisa rosa.
Então, alguns anos atrás, liguei essa história do meu amigo me ensinando sobre o “maria” até eu chegar a esse ponto com o Atlético. Percebi que eu tinha observado, engolido, digerido e me transformado exatamente no monstro que me ensinaram que eu deveria ser. Sentia raiva, ficava com ódio e frustração, lembro até de pateticamente bater em paredes ou em árvores quando o time perdia.
Não sei quando, mas sei quem foi a responsável por essa mudança: Marina Carneiro. Ela carregou nas costas a árdua missão de me transformar em um ser humano menos ruim, de libertar o amor que eu tinha dentro de mim de algumas amarras e crenças ruins que eu carregava. E aos poucos, fui me tornando, arrisco dizer, uma pessoa melhor.
Hoje, tenho mais do que orgulho de ser Maria, mais do que orgulho das Marias de Minas. Aprendi a amar. E amar em vários sentidos.

Imagina, tirar uma foto com arco íris e a camisa do Cruzeiro? Iam te chamar de Maria! E Júlia, eu só lembro do nosso caso do guarda chuva e as pequenas homofobias da minha vida. (eu amo essa foto)
Eu sei que tudo muda, tudo vai mudar.
A vida é ciclo constante de transformações, e o futebol, como um reflexo, reflete essa mutação. Não sei exatamente como terminar esse texto, como dar um ponto final a essa esquisito sentimento que está na minha cabeça. Tenho esse fluxo incessante de pensamentos, sentimentos e memórias que me conectam ao campo, ao Cruzeiro, ao Deportivo, minha família e a tantas outras paixões que compõem a minha vida.
Talvez este texto seja apenas um despejo de um tema que me veio tão forte na cabeça, um reflexo da paixão que me acompanha desde a infância.
Mal falei do Deportivo La Coruña, um time que eu VERDADEIRAMENTE TORÇO, sigo e tento de todos os jeitos manter relevante. Inclusive, próximos de subir!
A comparação do futebol com um professor da vida é boa de início, esbarra com dificuldades na realidade. Toda torcida, por exemplo, vive a emoção à flor da pele, exigindo vitórias, buscando culpados e oscilando entre o desejo e a necessidade de mudança.
Essa analogia, apesar de válida, não captura a complexa teia de preconceitos, ódios e burrices que permeiam esse mundo, muitas vezes engolidos pelos torcedores.
No campo da vida real, o desafio reside em encontrar o equilíbrio entre o que queremos fazer e o que realmente precisamos mudar, é um processo gradual. É preciso discernimento para navegar nesse mar de emoções e preconceitos, buscando a sabedoria que o esporte, em sua essência, pode nos ensinar.
Marina se irrita quando as pessoas falam do seu time na primeira pessoa, como se fizessem parte da Equipe. Não “O Cruzeiro tem que melhorar”, mas na primeira pessoa do plural, com os “Nós temos que melhorar”, “temos que trocar o técnico”, isso irrita ela, e é um pouco é por não ser parte dessa paixão, entender o lado lindo que é esse êxtase coletivo, essa experiência linda que é em estar em grupo nas vitórias, nas derrotas. Acho que para quem vê de fora, é algo estranho estar em simbiose também com o lado ruim, ligado umbilicalmente a aquela violenta, cruel e venenosa parte. É difícil para quem está do lado de dentro distinguir a paixão daqueles atos negativos, como homofobia, racismo, ódio e violência, que, infelizmente, estão presentes naqueles reflexos da sociedade que teimamos em esconder, que nessa união ficam ali expostos. Muitos amigos passam os dias tentando justificar que sua torcida é diferente, que seu time é diferente.
Acredito que não. Todos os clubes, quando em algum nível de popularidade, são, como falei antes, apenas meros reflexos do ambiente que estão inseridos, com seus lados bons e ruins. Inevitável, como Thanos.
A busca tem que ser pelo equilíbrio: desfrutar da paixão sem se deixar consumir por ela.
Tenho muito a falar sobre o futebol e o que ele me ensinou. Mas, para mim, o mais importante é lembrar dele como uma figura mística e onipresente, pode nos ajudar a lidar com nossos conflitos internos e emoções difíceis. Tento me reconfortar com o meu crescimento recente, enquanto tento me manter parte do que amo. Honestamente, vi muitos amigos abandonarem a acompanhar o clube por causa de acontecimentos desanimadores, como decepções com funcionários, fases ruins do elenco, mudanças na estrutura do clube, novos donos, problemas na torcida, ou até mesmo um distanciamento pessoal do seu Time. Tudo isso pode criar uma dissonância com o que antes era fonte de alívio e amor.
Acredito que pra mim, as coisas tendem a se manter nesse bom equilíbrio. Eu tenho um relacionamento cada vez mais saudável com o esporte, lidando bem com essa flutuação e negatividade. Quem sobreviveu aqueles anos na Série B do Cruzeiro consegue lidar com qualquer coisa. Ainda me frustra, claro, mas não é algo que me dá problemas na vida real.
– O que deixa feliz na Vida Real? Ei, esse conceito dá um texto legal ein?
Vou terminando mesmo, só espero que o futuro me aguarda seja com o Cruzeiro comemorando títulos. Com o Deportivo de volta à primeira divisão, e quem sabe beliscar até as copas internacionais, e o Hexa.
– O que?
Me deixa sonhar, vai?
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