RAFAEL

Meu nome é Rafael, mas pode me chamar de Rafinha. Aqui eu escrevo o que parece verdade na hora. Se amanhã eu discordar de mim mesmo, parabéns pra mim: evoluí ou pirei mais um pouco.

Sotaque: pertencimento e identidade na minha jornada

Publicado originalmente no Weebly em 20/05/2025

Sotaque: pertencimento e identidade na minha jornada – Rafa, mas esse é o blog

———————

Um dia desses, estava na casa da minha prima Taciana na sala, comemorando o nascimento da filha dela, a nossa queridíssima Alice. E fomos conversar sobre o que dois VELHOS com quase 30 anos tendem a conversar. 

Memórias;

Conversamos sobre momentos na casa do Vovô Arnaldo, de dias e histórias com a Vovó Nilsinha, das listas de histórias do Vô, das moradias que eles tiveram, da casa da Rua Teresina, do sítio, da Fazenda, da Chácara. E de todas as conversas que tínhamos, no infinito diálogo de dois antigos amigos, entramos no tema sobre a adorável forma de falar de Sete Lagoas dela, cortando um pouco as palavras, usando o “de” ao se indicar a uma pessoa, e outros detalhes que tornam essa forma de falar facilmente identificável para mim.

Sua resposta me surpreendeu um pouco, “É um sotaque horrível”, disse sem hesitar. Senti uma pontada de tristeza, pois aquela pronúncia tão bonita, carrega para mim tantas memórias e afeto.

Me peguei refletindo sobre isso, o que leva uma pessoa a ver a sua história e raízes como algo negativo? O mais interessante é que, honestamente, tenho uma história surpreendentemente rica com essas diversas formas de expressão linguística. 

Até porque eu mesmo sou uma pessoa que tive um dialeto particularmente único, que refletia minha também única história. 

Embora a vida em Belo Horizonte esteja gradativamente diluindo meu sotaque original, algo inevitável após 15 anos aqui, é algo triste, no fundo.

Mas essa singularidade causou um limbo interessante. Fui estrangeiro independente das minhas terras. Minha fala, essa mistura me fazia um ser não-pertencente. Em diversas vezes era questionado sobre de onde era minha família, seja no Pará, em Vila Velha ou em Minas Gerais, pois questionavam que a minha forma não era familiar ou local, então era um estrangeiro na minha casa.

Essa mistura moldou minha identidade e me proporcionou uma vida em que tentei muito ser como a letra do Lô Borges “Sou do mundo, sou Minas Gerais”.

Mas não era tão fácil assim.  

Perdido nesses pensamentos, comecei a me perguntar o que realmente significa ter um sotaque ‘bonito’ ou ‘feio’, o que leva a essas decisões.

Lembrei de imediato de tantas situações, até de conversas com amigos tentando mostrar desesperadamente o quanto sua fala em inglês é mais natural e “sem sotaque”, e o quão infrutífera é essa discussão. Mas falando sobre como sotaque te coloca em algum lugar do mundo, eu lembro do Chicão, e um pouco da minha madrinha, dois moradores de décadas em Minas Gerais, que mantiveram seu sotaque original, desafiando a “ordem natural”.

Fotografia

Eu e a Tatinha

O Chicão e o Sotaque

O Chicão é uma das pessoas mais importantes para mim quando se trata dessa discussão, uma pessoa de um coração enorme e voz de radialista, e um sotaque carioca marcante.

E conversar com ele é desdobrar várias camadas de uma pessoa com tanto para falar e tantas opiniões interessantes e particularmente inteligentes. É um excelente conselheiro e uma figura muito positiva na minha vida e nos nossos anos de amizade. Mas a sua relação com Sotaques é um microcosmo sobre como a forma de falar representa quem somos e onde estamos no mundo. Ele está em Minas de forma contínua a mais tempo que eu, mas tem ainda uma fala chiada característica do Rio de Janeiro.

Há alguns anos, conversei com ele sobre o porquê de ele manter o sotaque carioca. Ele me disse que é um grito de revolta, uma posição de desafio contra um estado e uma cidade que não o abraçaram em situações complicadas durante sua infância e adolescência. Então teima, de uma forma positiva, em manter a sua identidade carioca, seja com camisas sobre o Rio, histórias, gírias e claro, com sua fala, ele se mantém como parte da cultura de lá.

Ao longo da minha vida, tive opiniões divergentes sobre o tema. Em um período, achei esse apego desnecessário, mas hoje, entendendo como fui tratado e visto em outras situações, entendi como isso é forma em se tornar parte de algo maior no mundo, como faço com minhas tatuagens. O sotaque é parte de uma bonita tentativa de ser parte, algo que ele faz ainda mais natural e suavemente. É de um tremendo orgulho aprender sobre isso com ele.

Minha madrinha Nivia faz de forma similar. Corintiana, Paulista e dona de uma risada deliciosamente fácil de ouvir, ela tem até hoje o sotaque paulista. Já em Minas, há uns 40 anos, ela já foi muito questionada do porquê se abraçar nessa fala por tantos anos. E sei que tem muito a ver com a situação do Chicão.

É sobre pertencimento.

Fotografia

A galerinha (quase) toda aí. Os meninos do Pitágoras que são também minha família aqui em BH.

O Pará

Antes do Chicão, antes das minhas histórias e entender um pouco disso, eu morei no Pará. No auge da minha crise de pertencimento que tive. Morando lá, tentando não pertencer àquele lugar, porque meus pais sempre viram como um “sotaque feio” e até honestamente um pouco de desgostar do local, vendo-o de cima para baixo, e eu naturalmente absorvi bastante dessa lógica.

Nessa época, morando em Parauapebas, participei de uma aula de português sobre dialetos. A aula abordava temas como identidade e preconceito linguístico, discutindo a ideia de que algumas formas de se comunicar poderiam ser erradas. A discussão pautava que não existia uso errado da língua portuguesa bem como defendendo o uso de gírias e regionalismos, e sobre como são apenas dialetos, e deviam ser respeitados por isso.

Eu, munido de toda a arrogância de um adolescente curioso, que acha que sabe tudo, foi brigar com a Sueli, a professora de português. Dentre os vários pontos, como o português ter uma versão “correta”, e, além disso, sotaques não podem ser dialetos. Na minha cabeça, um dialeto deveria ser algo complexo, aprofundado e com aspectos evoluídos, já distantes da vida moderna, não “apenas um R puxado ou uma, ou outra gíria”. 

Ela, com muita paciência, tentou me mostrar exemplos, histórias e até um livro. Lembro que na época eu não conseguia entender, pois eram conceitos distantes. Percebo hoje que estava errado. O Sotaque é sim um dialeto, e também uma forma de te identificar a um local, a sua história e claro

sobre pertencimento

Tecnicamente, a discussão tem vários pontos, e trazem uma distinção até simples, como está no site Alphatrad, “Muitos confundem os dois (sotaque e dialeto), e utilizam-nos frequentemente de forma intermutável. A boa notícia é que a diferença é muito mais clara aqui.

Um sotaque é um subconjunto de um dialeto.

Enquanto os dialetos cobrem todos os aspectos da língua – gramática, vocabulário e pronúncia – um sotaque diz respeito apenas à terceira parte.”

Claramente, as variações da fala no Brasil vão muito além da simples pronúncia do “s” chiado ou do uso de palavras como “mandioca” e “macaxeira”. Elas representam uma conexão profunda com a terra natal de cada pessoa.

Esse foi o início dessa minha complexa relação com a minha forma de falar. Admito que hoje eu consigo ver com algum carinho, e até queria ter mantido e inserido mais sobre a forma deles de falar comigo. Eventualmente uso um “Vou Banhar” e o “Oxe/Oxi”, mas pouco carrego, além disso. Sei que muito por preconceito, e por isso perdi uma chance enorme de vestir essa faceta muito representativa de mim mesmo.

E essa é uma daquelas situações que mostram o quanto eu podia ter aprendido ainda mais, evoluído e mudado, mas fiquei preso nesses pequenos e grandes preconceitos com o que é feio ou bonito em sotaques.

Esse, sim, ponto pacífico entre estudiosos.

Não há sotaque certo ou errado, ou feio, ou bonito. 

Mas por que minha prima acha que a fala sete-lagoano feia? Ou meus pais com a forma de falar do paraense? 

Como algo pode ser feio se ele é apenas uma representação do que ele é?

Ah, é isso.

Fotografia

Eu no teatro lá em Carajás por volta de 2009. Meu papel? Lixo.

O preconceito linguístico e sua origem:

Já explorei esse tema da minha criação em outros textos meus, e é algo fácil de entender. Minha criação foi fantástica, mas uma característica deixada em xeque foram esses pequenos e grandes preconceitos que são tão fáceis de crescerem e virarem monstros dentro de nós. 

Temos diversos momentos que expressamos esse preconceito linguístico, principalmente para nos colocarmos acima de outras pessoas, em tantos contextos sociais. Quantas vezes tive conversas com primos, com amigos que pretendiam “sumir” com seu sotaque ao falar uma lingua estrangeira, ou falarem com orgulho da sua falta deste, apresentando como uma medalha de orgulho a sua capacidade de ocultar seu sotaque (com variáveis níveis de sucesso), e não entenderam ação como um auto apagamento de sua origem, da sua história. 

Com minha cunhada, Júlia lembro de ter várias conversas sobre esse tema, e como ambos chegamos na conclusão que enquanto mais você abraçar o seu sotaque sua história mais você é categorizado por sua origem, e ao mesmo tempo se abrindo aos preconceitos e alienação, como me sentia, com meu sotaque não-definitivo que tive na minha adolescência.

Mas a minha experiência apenas foram devaneios infanto-juvenis. Imagine o quão difícil é a vida para quem trabalha com atendimento ao público, por exemplo, e seu chefe, acredita, como eu achei um dia, que o “sotaque errado” pode afastar um cliente e ele tem que mudar. A pessoa precisa então que sua origem, sua família seja apagada? Criar uma falsa realidade apenas para reforçar essa estranha lógica? 

Mesmo crianças e adolescentes, tem situações mais graves que essa alienação que eu senti, imagino como o Chicão se abraçou em sua própria história, transformando aquela crítica e brincadeira das crianças que poderia tanto machucar em autoestima, em orgulho.

É estranho novamente ser parte de algo tão ruim, sem mesmo ver.

O bom é que percebo um esforço na evolução e melhora dessa discussão sobre preconceito linguístico nos últimos anos. Quem sabe aos poucos vamos abraçar essa comunidade internacional e tirar esse…

É.
Acho que não.

Essa discussão dominada por puristas envenenam a conversa, e vão tentar justificar essa uma infinita e circular discussão, pautada em preconceitos, tristezas e até… ódio? 

Acho que está além dos meus poderes essa discussão. Mas quem sabe no meu pequeno mundo, eu possa mudar um pouco como eu mudei. Acho o sotaque sete-lagoano lindo, fico triste por ter perdido a oportunidade de absorver mais do paraense, e estou torcendo para Alice um dia me ligar falando em perfeito “setelagoanês” que vai na casa do Tio Rafa;

– “Vou aí na casa de Ti Rafa”. 

Acho que eu iria sorrir por dias seguidos. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *