Tem coisa que a gente já entendeu como sociedade.
Por que uma fábrica de cocaína não poderia estampar a camisa do Cruzeiro? Porque a gente entende que existe um limite. Que certas coisas fazem mal demais pra serem tratadas como algo normal.
Mas cá estamos com o campeonato brasileiro coberto da cabeça aos pés com as apostas… Estamos normalizando o mal.
Não sou ingênuo. Sei que o valor que eles pagam é altíssimo e hoje sustenta não só o futebol, mas o esporte em geral
Nossa cidade virou um outdoor gigante de Bets, KTO e apostas. De valores e odds ao vivo à caça-níqueis mal disfarçados. Se você andar por Belo Horizonte hoje, tem mais BET do que árvore. Cada propaganda luminosa, lutando para tirar sua atenção do trânsito, fala de: “se divirta com a KTO”.
Esse texto nasce de discussões reais, no meu trabalho, onde muitos se assustam: ‘Logo você, que defende a liberdade, quer proibir? Como se a única alternativa à proibição total (e ineficaz) fosse deixar o Tigrinho esticar suas patinhas em cada milímetro da nossa atenção.
Não se trata de voltar aos bingos clandestinos e porões de cassino. Isso seria ingênuo. A questão é: não podemos fazer do vício, e do vício em potencial, em algo aspiracional.
É isso que a publicidade faz. É isso que o influencer faz.
Por isso a propaganda da Bet Laranja é uma lindíssima moça jogando futevôlei na praia. Ou sempre são com amigos, rodeado de pessoas comemorando um gol, em êxtase. Porque eles querem isolar o aspecto social, o disparo de adrenalina e dopamina.
E você nem percebe. Ou percebe né.
Na hora que você percebe isso, a propaganda, a publi já está paga. Ela não quer só você estar jogando. É sobre plantar a ideia. E regar com a voz dele.
O Poder da Publicidade: A Máquina que Nunca Para
A publicidade não é inocente. Nunca foi. A indústria gasta milhões…? bilhões.
Bihões para ocupar espaço na sua cabeça. Pra criar desejo, pra gerar necessidade, pra te fazer acreditar que aquilo ali é parte natural da vida. Se não funcionasse, não estaria em todos os lugares.
Você sabe o poder da repetição. Lembra do jingle daquela marca de carro? Eu sei o telefone do Santa Helena Express e se eu der duro, tomo um Dreher, e que um natal sem uma Coca gelada, não é natal. O poder de normalizar algo pela repetição e exposição massiva é amplamente explorado e debatido.
Cigarro já foi sexy. Cerveja já foi sinônimo de liberdade. Hoje, é o “Jogo do Tigrinho” que aparece como um caminho pra diversão e grana fácil.
E é aí que entra a armadilha.
A Dualidade (e a Armadilha)
Não tô falando de proibir tudo. Nem de fingir que o vício não existe, como se esconder resolvesse. A gente já tentou empurrar isso pros porões antes, e não funcionou.
O problema é que quando você finge que não existe, você isola quem vive isso. Quem tem o vício vira pária, vira erro. E aí ninguém trata só empurra pro porão.
Sempre vai ter gente buscando uma fuga. Sempre vai ter alguém rodando roleta em site suspeito das Ilhas Caymã às três da manhã de uma quinta.
Só que “é melhor liberar do que esconder” não pode servir de desculpa pro que tá rolando agora.
Porque isso aí não é liberdade. É overdose.
É sair do porão direto pro palco principal, com holofote e tudo.
O mundo não existe só no preto e branco, sabe? Não é ‘ou é proibido, ou a camisa do Cruzeiro vai ter ‘Pedrinhas de Crack do Seu Zé’ estampada’. A vida não funciona só nesses extremos. Mas o que é feito com as bets, principalmente, é um absurdo.
BET, BETANO, BETAQUI… os nomes mudam, mas o cerco é o mesmo.
Eles estão em todo lugar.
Toda notícia é que finalmente a empresa conseguiu um bet pra chamar de seu. O Governo Federal querendo a MEGABET da MegaSena ou a Globo, o SBT. Todo mundo querendo uma pra chamar de sua.
No outdoor. Na camisa do time. No intervalo da novela. No Instagram. No podcast. No vídeo de receita, de treino, de unboxing. Nos stories daquele influencer que fala de “vida saudável” e no react de BBB.
Já teve aposta até no nome do novo papa.
Se vacilar, daqui a pouco tem aposta no pão de queijo, se vai vir bom ou queimado. E as odds estão favorecendo o queimado, pelo cheiro.
E aí vem o que mais me incomoda:
Não é mais “ah, as pessoas sempre apostaram”.
É “por que a Bet virou Coca-Cola?”. Uma presença familiar e normalizada.
Como se fosse um mimo. Um biscoito de polvilho. Uma coisinha fofa pra passar o tempo. Ninguém tá com arma na minha cabeça ameaçando jogar
Né?
O Papel do Influencer e a Lavagem de Imagem
É aí que entra o influencer. E o argumento mais patético de todos começa a aparecer:
“Ah, mas ele não tá apertando o botão no seu celular pra você apostar.”
Não precisa.
A função do influencer não é te forçar. É muito mais sutil, e ele a executa com maestria, transformando o perigoso em algo inofensivo.
A função dele no teatro é de limpeza. É tirar o peso.
As empresas sabem disso: pegam o que é um alarme. Um vício, um risco, uma ruína. E embrulham em bonito papel de presente, entregando os “recebidinhos“. Eles colocam um rosto bonito, uma voz alegre, uma estética vibrante. E finalizam a transformação. O perigo vira curiosidade.
A mágica acontece na normalização. Quando todo mundo fala disso com leveza, essa leveza se torna contagiosa. O jogo, que deveria ser um sinal de alerta, vira passatempo. Um hobby. Um meme. O peso diminuído.
A sequência é óbvia e, em qualquer ponto, já é uma vitória para eles. Imagine uma mãe vendo o filho no aplicativo da Betano. Como ela vai questionar, se a empresa é patrocinadora do clube que ele torce? Ela não apertou o botão, não gastou um centavo, mas a aparência de legitimidade já foi finalizada.
Afinal, se o atleta que você respeita está promovendo, aquilo automaticamente ganha um selo invisível de aprovação. Se todo mundo está jogando e se divertindo, a culpa do vício é jogada no fracasso individual, no vulnerável que “já tem inclinação para se perder mesmo“.
E você morde achando que tá no controle, que só o Viciado, o vulnerável que é vítima dessa normalização. Você está acima disso, não está?
Você não está.
A Hipocrisia Legal e Moral
Se alguém aparecesse propondo patrocinar o Cruzeiro com uma cerveja artesanal chamada “Cocaína”, ninguém deixaria passar. A ideia soaria absurda. Chocante. E com razão: crack e cocaína ainda carregam estigmas profundos.
Mas sabe o que também causa dependência, dívida, ruína emocional, suicídio e destruição familiar?
Jogo.
E a resposta do Estado, da mídia e dos clubes foi empurrar isso pra sociedade como se fosse… entretenimento. Um “parceiro comercial”. Todo mundo correndo atrás de uma bet pra chamar de sua.
Por que proibimos e regulamos certas drogas com tanta rigidez, mas só agora estamos pensando que alguém botar o empréstimo do cartão de crédito por Pix num jogo do tigrinho é um problema?
O ponto não é proibir. É reconhecer.
Não se trata de voltar ao tempo dos bingos escondidos.
É sobre entender que estamos normalizando uma indústria que lucra com vulnerabilidade.
Não tem resposta simples. Mas tem um mínimo que tem de ser feito. E não é cobrar do usuário, não é cobrar e punir quem foi vítima do que foi planejado pra ele. Ele só seguiu o caminho correto que lhe foi desenhado.
Estamos em espaço onde vício é entretenimento, onde os clubes, criadores, plataformas lucram sem as repercussões. Mesmo sabendo que é saúde pública, não patrocínio.
Se a gente não falar agora, vamos perder essa conversa pra sempre. Vão transformar vício em trilha de Reels. Teremos que aguardar um desastre catastrófico para tentar mexer.
Eu não escrevo isso com respostas. Escrevo porque tô cansado.
Cansado de ver amigo rindo do Jogo do Tigrinho como meme, enquanto do lado dele outro amigo joga na roleta. E outro grupo discute se o gol de cabeça do Fluminense com Super Odd é uma boa aposta para o jogo de noite.
Eu sou Relações Públicas. Publicista.
E sei o que a imagem é capaz de fazer.
Sei o que um vídeo bem editado faz com a cabeça de alguém vulnerável.
Sei como um story pode transformar algo sujo em algo aspiracional.
Você acha que publicidade não funciona?
Então por que lembra da marca que seu ídolo usa?
Por que canta jingle sem perceber?
Como você sabe o que é odd de uma bet?
Você vai deixar seu orgulho de ser acima disso te cegar?
Não subestime uma imagem normalizada, lavada.
Não ache que é coincidência ver um cassino digital em cada tela.
É estratégia. É dinheiro. É manipulação.
O preço disso não aparece no patrocínio.
Tá no Pix perdido. No CPF negativado. No silêncio depois da aposta.
Tá no seu amigo não saindo porque perdeu uma aposta em escanteios no México.
Tá no seu cliente atrasando porque zerou na roleta.
Eu não tenho solução.
Mas tenho um grito.
Um grito de quem estudou pra comunicar e sabe que a indústria sempre lavou a imagem de diferentes itens. De diferentes vícios.
Mas a minha voz vale. Tem que valer.
É sobre o quanto a gente já achou isso tudo normal.
É sobre o quanto EU já acho isso normal.
Se você acha que o problema é só de quem aposta, parabéns: já foi convencido.
E é por isso que escrevi.
Porque mesmo sem solução, me recuso a calar.
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