Um Ensaio Pequeno e Supersticioso Demais sobre Cultura, Culpa e Camisa da Sorte
Eu sou ateu desde meus 12 anos. Gosto de me pensar como um ser racional, cético, desses que entende de ciência, já leu sobre viés cognitivo e se irrita com mensagens de “gratidão ao universo” no LinkedIn. Cartas de tarô são tão aleatórias quanto dados. Religiões, pra mim, ocupam um espaço vago da alma, aquele vazio que a gente preenche com o que dá.
E ainda assim… eu tenho uma camisa da sorte. Tatuei uma carta de tarô. Fiquei nervoso ao ver cabelos caindo porque cortei o cabelo na Lua Nova. Tenho um jeito certo de entrar na quadra. Um ritualzinho antes de correr. Uma sensação meio proibida quando cruzo os dedos. Uma voz na cabeça que cochicha: “Não fala isso em voz alta, pode atrair.”. Toda vez que falo “DESGRAÇA” vejo um popup do Pokémon Red: “RAFAEL, NÃO É HORA DE FAZER ISSO”, ecoando a ansiedade da minha mãe com essa palavra.
Eu cresci na América Latina. Mais precisamente: no Brasil, numa família que tinha tudo que precisava, e não éramos particularmente os mais religiosos. Vovó tinha a Bíblia na estante, meu pai tem santo (e MUITAS SUPERTIÇÕES), minha mãe me levou na benzedeira e havia diversas histórias de “coisas que não se explicam”. E mesmo quando a razão chegou, a superstição ficou, não como crença, mas como marca e histórico.
Acho que no fundo, é algo sobre ser latino. São décadas, séculos de culpas acumuladas nessas tradições que você não entende. Com tantas camadas de catolicismo, crendice, cultura afro, cultura indígena, que fazem a gente evitar abrir guarda-chuva dentro de casa mesmo quando você jura que não acredita em nada.
A Marina acredita em tudo. Signos, mapas astrais, ervas, intuições. Lembro de um dia a gente ver uma escultura de uma deusa egípcia, acho que uma Ísis, no chão do prédio do meu avô, e ela dando a volta pra não encostar. “Não entendo, então vou respeitar”. Fiquei em iguais partes impressionado e feliz. É um nível de respeito imenso. Lembro dela às vezes me perguntar sobre o que eu acredito ou não. Foi um incômodo no nosso relacionamento, muito da minha parte. Mas aprendi a ver beleza nisso dela.
Mas ela não deixa barato. Lembro da Luiza, minha amiga, quando eu falo das minhas pequenas (e grandes) superstições. Ela fala: “Rafa, você é de Peixes, não dá pra fugir disso”. E eu finjo que não sei nada disso. Mas no fundo já li horrores do meu mapa astral e fico irritado porque ele acerta muito. Mas além disso, eu sou latino. E não tem como fugir disso. O medo do chinelo virado. Bater na madeira. Ficar em silêncio quando passo por uma igreja. Fazer o sinal da cruz, ou entrar na reza com o pessoal por default. A blusa da sorte no jogo do Cruzeiro. Trocar de lugar ou a meia. Não ver jogo na casa de atleticano (essa é culpa do meu pai).
Fora as culpas que a gente cresce. Culpa por mentir, por falar, por não fazer, por cortar o cabelo na lua nova (esse é da minha vó). Tantas outras que a gente só repete, por hábito, por mania e por medo?
Enfim, acho que é além do certo ou errado. Não é sobre fé ou lógica. É só… como a gente é. Uma mistura de culpa, trauma, cultura e mágica.
Nossos pais cresceram em uma ditadura, e logo ao sair foram jogados no liquidificador da hiperinflação. Quem não saiu doido, saiu supersticioso. Ou os dois.
Então sim, eu sou ateu. Mas um ateu à la latino.
Sou o tipo de ateu que não joga fora medalhinha. Que se arrepia com procissão. Que tem vergonha de pedir coisas, mas pede em pensamento. Que acredita na ciência, mas respeita o mistério. Que sabe o que as cartas de tarô fazem, e tem uma ideia do seu mapa astral.
Porque eu sei que aqui, até o mais cético ainda é um pouco católico. Nem que seja só pela camisa da sorte.
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