Era um dia qualquer, num quarto abafado em Carajás. O suor escorrendo de cada poro, o controle quase escorregando da mão. Mas ali, por três horas a fio, três adolescentes estavam colados na TV do quarto, prestes a zerar Kingdom Hearts 2 em japonês. Não entendíamos nada da história, talvez nem com o Sora upado direito, mas a torcida era unânime: que o modo “dark” dele aparecesse e nos desse o dano que precisávamos.
Naquele espaço flutuante, lado a lado com Riku e Sora, em um duelo espacial que parecia épico no PS2 Fat que eu tinha há anos, a celebração aconteceu. Zeramos KH2. E comemoramos como se fosse o momento final de uma longa, exaustiva e gloriosa jornada.
No fundo, era isso que importava. Não era o jogo em si, mas o estar junto, a conexão. Essa era a verdadeira vitória. Aquele momento, mais do que o arco de Sora selando a escuridão, foi um ato de carinho e celebração pra mim. Algo que sei que passarei o resto da vida procurando repetir, em diferentes formas e com diferentes rostos.
Admito, sempre foi assim. Acho que nunca joguei genuinamente sozinho. As experiências, para mim, nasceram para ser divididas, comentadas, faladas. Amadas. Mesmo quando a vida me pedia resultados e metas implacáveis, meu coração buscava a ressonância do outro, o eco de uma risada, a cumplicidade de um desafio vencido em conjunto. É um trabalho constante de dualidade: aprender a imergir na solitude de um Final Fantasy X-2, curtindo a história só para mim, e ao mesmo tempo anseio pelo caos compartilhado de um basquete ou Valorant, convivendo com as falhas, os erros, e a vontade de aparecer e fazer a diferença.
Memórias de um Jogador Conectado: A Nostalgia dos Games
Meu primeiro contato com o videogame veio do Mega Drive do meu pai, mas ele largou cedo, a vida adulta o chamou para outros “grinds”. Fui eu quem jogou até o botão desgastar. Aprendi a soltar o HAMBURGUER, a forma carinhosa que minha família teimava em chamar o Hadouken do Ryu. Joguei muito Sonic 1, aprendi sobre o Ayrton Senna, e joguei mesmo sem entender os comandos ou objetivos, apenas pela pura alegria de estar ali, com aquele mundo na palma da mão.
Mas a experiência definitiva chegou. No auge da Poké-Mania dos anos 2000, e no meio da separação dos meus pais, meu pai aparece lá em casa vindo de uma viagem a trabalho aos EUA com um Nintendo 64 e Pokémon Stadium. Uma loucurinha financeira que talvez mudaria meu destino, um gesto distante que gritava “estou aqui”. E mais tarde, o Gameboy que eu mesmo comprei com esforço (e uma forte desconfiança de que minha mãe completou E BASTANTE o valor dos presentes de aniversário e Natal ali acumulados). Tive poucos cartuchos, como era comum nos anos 2000 no Brasil, mas todos amáveis: Fifa Road to World Cup 98, Zelda Majora’s Mask (presente da vovó Aideé que quase minha mãe jogou no lixo de tantos pesadelos tive, intensificados pelo desconhecimento da língua), Super Smash Bros… E claro, a coroa, Pokémon Stadium. Esse foi amado, jogado e curtido até a medula.
No mundo dos portáteis, menos ainda. Um Harry Potter e a Pedra Filosofal e Pokémon Silver — e muito antes, um Pokémon Red solto — foram meus mundos no portátil. Quase todos com fins trágicos: o Pokémon Red sumiu na caminhonete do vovô, nunca mais achado; o Pokémon Silver desapareceu na minha mochila em Sete Lagoas. Mas no fundo, as memórias são mais positivas que negativas. Elas pulsam com a alegria de dividir os jogos com meu irmão, de perguntar ao meu pai sobre os jogadores no Fifa, e de ver meu irmão crescer nos games, dividindo aventuras, jogos e esportes.
Lembro do meu ritual de ir à Blockbuster quando vinha para BH visitar meus avós. Vasculhar a prateleira de devoluções como quem procura um tesouro, atrás do Super Smash Bros que teimava em estar alugado, só para jogar contra meus primos, que, mesmo sem ter o console, pareciam melhores que eu. Tudo isso enquanto a cozinha se animava com vinho, cerveja, frango frito e os cheiros deliciosos do apartamento do vovô. Era a vida se desenrolando, e o significado dos videogames ia muito além da tela, virando um dos fios dessa tapeçaria da vida.
E os esportes, sempre eles. Meus pais tinham aversão à violência, foram bem consumidos pelas fake news dos anos 90 e 2000 sobre videogames, mas meus queridos Pokémon e os esportes foram poupados. Joguei pouco em Lan Houses, mas tive várias experiências com diferentes esportes, desde NBA no 64, e fuçar os times e seleções no FIFA Road to World Cup 98, vendo meu Cruzeiro em inglês ser campeão, descobrir a Tunísia, a Nigéria, a Croácia… Era o mundo inteiro na sala do quarto, nas férias em Guarapari. E a euforia de acordar cedo com o Thiagão para tentar zerar o Castle do Pokémon Stadium com o Articash, nosso Articuno particularmente parrudo.
Tudo muda, não é? Lembro de ganhar o PS2 lá por 2004, consciente do privilégio. Pude aproveitar o auge da falsificação: a ansiedade de ir na banca, na papelaria, no moço da esquina, olhar os jogos. O cheiro e as cores dos discos falsos do PS2, a capinha com encarte mal impresso, a sensação de abrir e descobrir um novo universo.
Jogar, para mim, sempre foi par. Sempre teve alguém do lado. Principalmente meu irmão, ou os amigos. Nunca houve esse misticismo do herói solitário ou da fantasia de poder. Era divertido, ponto final. Era mais sobre rir juntos, descobrir juntos, explorar juntos. Chun Li ou o Piccolo foram minhas escolhas nos jogos de luta. Eu queria ganhar, claro, mas acho que no fundo eu queria ainda mais jogar e ganhar com quem eu gostava. Queria ver a cara do Dani quando eu acertava um especial. Queria que a experiência fosse nossa.
No fundo, o PS2 foi o console da minha vida. Foi onde construí as memórias mais vivas. Não pela tecnologia revolucionária, mas pelas pessoas. Pelos domingos com amigos, pelas madrugadas na casa do Dani, pelos saves compartilhados. Era uma alegria quase ritual. Jogos de esporte americano, RPGs em japonês, tantos jogos que não finalizei. Guardo um carinho especial pelos sons do Need for Speed Underground 2 e as músicas do Most Wanted.
Houve tardes em que o calor apertava, mas ninguém arredava o pé do sofá. No loading do NBA Live, a gente conversava sobre tudo: família, memórias, e até a imensa vontade de comer um Cheddar McMelt e um Milkshake do Bobs quando finalmente voltássemos pra BH. Era como se o tempo parasse. O videogame era desculpa, era ponte, era casa. Um espaço seguro.
Admito que sinto falta. Da mangueira no jardim de Carajás. Dos dias no clube, das férias de Julho em Guarapari. O calor sufocante e o gosto de sal da água, quebrado por um picolé de Uva da Girassol. E que, assim que voltasse com as costas quentes porque não botei protetor, eu ligaria o Nintendo 64 e teríamos uma noite daquelas. Jogaríamos videogame e Mau-Mau.
A Rotina e o Crescimento Pessoal na Vida Adulta
Engraçado como tudo mudou e nada mudou.
Tive um PSP, DS, os anos do PS3, PS4, Switch. E, inevitavelmente, vieram os jogos online. Perdi o contato humano físico, o calor do sofá, a conversa espontânea do lado. Aquela humanidade mais tátil, mais imediata. Sim, isso é uma perda, e é válido sentir falta. Mas, ao mesmo tempo, ganhei uma proximidade e constância que talvez nunca tivesse antes. Poder jogar com amigos em diferentes cidades, manter a conexão viva mesmo à distância, isso é algo precioso na vida adulta. É uma humanidade diferente, sim, talvez menos visceral na superfície, mas profundamente humana na intenção de estar junto, de compartilhar.
É a prova de que a minha essência de conexão não se perdeu, ela apenas se adaptou, encontrou novos canais. Essa busca incessante pelo humano é a minha rotina, a estrutura que me permite navegar nas minhas próprias dualidades, encontrando ordem no caos da minha alteração interna. O autoconhecimento surge justamente nessa dança entre o que se mantém e o que se transforma.
No fundo, eu sempre busquei… contato. E o humano. Minhas memórias mais queridas são de jogar com os meninos do Pitágoras TowerFall na casa do Marcelo, League of Legends com tantos amigos, as histórias da 58ers, Valorant, Grounded com a Shiny. Sempre era sobre estar junto. Por mais que eu me cobrava e ficava frustrado, desencaixado, no fundo, era a conexão que eu sempre gostei.
A própria Shiny eu descobri por… Pokémon competitivo! Um jogo e um esporte surpreendentemente profundo e legal. Poucas coisas são mais gostosas que acertar um predict e ganhar o jogo.
Foram 10 anos de tentativa e erro. De perder com dignidade. De tomar esporro e não deixar que aquilo me definisse. De entender que tem gente estúpida mesmo, no jogo e fora. E que tudo bem. Hoje, gosto de achar que aprendi a rir, a mutar, a respirar ou não participar quando não quero. Estou aprendendo (a duras custas!) que perder não me diminui. Que aprender é um processo. Que ser ruim no começo não me torna menor. Que o jogo continua. Isso é o mini-fluxo da vida adulta: lidar com as frustrações e desencaixes, com a gente estúpida, com a necessidade de aprender a ser mais firme, de decidir quando e como aparecer. É a dualidade do grind, onde o erro e a persistência convivem, e a celebração está no processo. É onde aprendo a escolher a minha presença, não por obrigação ou para fugir do medo do espelho e da “bile no estômago”, mas por querer estar junto, por querer ser eu em plenitude. Esse é o verdadeiro propósito em jogos: o aprendizado da vida.
Ainda tenho meus saves antigos. Meus consoles. Até um Gameboy igualzinho ao que eu tive, com um Pokémon Silver igualzinho. Não joguei. Mas tá ali. Como um relicário. Como um lembrete físico de tudo que passou. Da infância, da adolescência, das tardes que pareciam eternas. A nostalgia, eu sei, pode ser violenta e vender um passado que nunca foi, idealizado em uma perfeição que não existiu. Mas a beleza é que a essência do que eu amo permanece e se manifesta de novas formas.
A minha crônica?
Talvez seja a do Lyon. Dos dias em que eu levava o console na mochila e ficava contando os minutos pra voltar pra casa dele e continuar o jogo. A ansiedade de ligar tudo, de ver a abertura de Kingdom Hearts de novo, de fingir que entendíamos as falas. Ou a da Blockbuster, espiando a prateleira de devoluções em busca de uma joia rara pro domingo em família. Torneio de Smash no quartinho dos fundos. Todo mundo junto. Talvez aquilo, exatamente, nunca volte.
Mas ainda pulsa em mim. Quando ouço certas trilhas sonoras. Quando vejo uma capa antiga. Quando lembro do Dani vencendo no FIFA pela primeira vez, comigo tentando de verdade. Comemorar Grounded com os meninos, ir no Mineirão, jogar esportes, dividir Animal Crossing com a Marina: esses são os Kingdom Hearts 2 da minha vida adulta.
Porque o console era só um pretexto.
O que eu queria, e é o que eu ainda quero;
É estar junto.
E talvez seja isso que videogame significa pra mim. Não mundos alternativos. Não o ranking digital. Mas a chance de compartilhar tempo, história, alegria. Uma desculpa pra amar, mesmo em silêncio. Mesmo com controle na mão. É a essência da minha dualidade: a busca por solitude e prazer pessoal, convivendo com a necessidade intrínseca de conexão e partilha, onde o falhar e o aparecer são partes de um mesmo fluxo. Essa é a minha forma de encontrar propósito e celebração na vida, reconhecendo que a rotina e os rituais são a estrutura que me permitem acolher todas essas camadas – o Rafa de antes, o Rafa de agora, o Rafa que se autoafirma sem se anular – em um processo de integração profunda e contínua.
O Rafa que baba ainda na abertura de Final Fantasy X-2. Que tem certeza que jogar um Fifa com os amigos ele consegue dar trabalho com o Deportivo La Coruña. Que vai dar trabalho no Valorant com a Viper. Que até hoje se precisar vai jogar constante com a Sejuani, mesmo errando uns ults. Que vai jogar basquete e dar uns tocos, mas um belíssimo Airball quando tiver sozinho na boca do Garrafão.
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