RAFAEL

Meu nome é Rafael, mas pode me chamar de Rafinha. Aqui eu escrevo o que parece verdade na hora. Se amanhã eu discordar de mim mesmo, parabéns pra mim: evoluí ou pirei mais um pouco.

A nostalgic display of vintage cassette tapes featuring iconic bands and albums from the past.

Tem música que é gente

Préludio em mim

Pra mim, música é gente. Tem umas que a gente nunca esquece porque deixaram uma trilha tocando por dentro. E tem música que virou alguém, apareceu no momento certo, com seus cheiros, vozes, danças e sons.

Poucos imaginam o quanto isso é entranhado em mim. Sou teimoso, tenho dificuldade de largar amigos, fases, hábitos… e músicas.

Elas criam raízes fundas em mim, misturam-se a sabores, lembranças, cheiros e silêncios longos demais.

Verso: O fio que costura tudo

Lembro de uma explicação comum, que somos uma colcha de retalhos de memórias.

Eu acredito nisso.

Minha música favorita foi presente de um primo. Meu prato favorito nasceu num jantar com uma madrinha querida. Meu chiclete preferido foi dado por um crush de quando eu tinha uns 12 anos. Meu corte de cabelo atual veio de um elogio de um amigo, ainda na adolescência. Descobri meu perfume favorito quando minha esposa disse que amava o cheiro.

Dizem que somos feitos desses retalhos. Mas pra mim, quem costura tudo é a música. A música é o fio, o que une cada pedaço, o que segura a colcha. É som que amarra memória e emoção, cheiro e toque, gesto e silêncio.

Refrão: Quando a memória canta

Existem locais que a própria existência faz algo começar a tocar na minha cabeça. Marina constantemente sabe que é muito fácil “ativar” uma música na jukebox mental. Uma palavra, uma rima e eu estou cantarolando Domingo do Só Para Contrariar.

Não consigo andar por Copacabana sem ouvir “Abracadabra”, da Gaga. Amigos, ex-crushes, momentos, todos têm trilhas, mesmo que nem saibam. Ouvir Rush me leva direto pros meninos do Pitágoras. A Marina está na guitarrada dos Strokes. E tem muito mais. Às vezes até eu me espanto com o que minha memória desenterra.

E eu lembro exatamente do ponto onde esse fio começou, meu primo Thiago me mostrando “Duck and Run” do 3 Doors Down. Aquilo virou o rosto dele pra mim. Uma música gringa, agressiva e legal, do jeitinho que ele era. A partir dali, as músicas começaram a se tornar pessoas. Ouvi “Pieces of Me” e pensei numa menina da escola. Ganhei um CD do Linkin Park de uma amiga, virou nossa ponte.

Ponte: Som e cheiro é gente também

Sou sensorial. Cheiros me pegam, sons me capturam. As pessoas têm cheiros. A Marina tem, meu pai tem, meus amigos também. Meu avô tinha. Às vezes, se fecho os olhos, consigo lembrar do cheiro de uma mesa, de uma sala, de uma tarde. Penso que, por ser mais alto, às vezes sinto o cheiro no topo da cabeça das pessoas, como se fosse um segredo que só eu alcanço. Mas esse é outro texto.

Este aqui é sobre música.

Tenho um reflexo automático: quando estou tomado por uma emoção forte, ansiedade, saudade, alegria, ódio, tristeza, uma música aparece. Às vezes é um chiclete qualquer, outras vem com chave, com sentido.

Algumas são máscara, outras são espelho.

Solo: As canções que me habitam

E muitas são o Dani. Ele diz que tem músicas que não consegue ouvir até hoje porque eu ouvia até o fim da paciência humana. E mesmo assim, ele lembra. Eu também. “Wake Me Up When September Ends” é ele revirando os olhos. A sala antiga da nossa casa, meu pai dedilhando violão e o Dani cantando “Palco”. Meu pai, no fim de uma festa, puxando “Dois Passos do Paraíso”. A rádio anunciando mais um programa da série “Dedique uma canção a quem você ama”, e ele sabia a letra toda. Eu e Marina, dançando “Andança” ou Gaga. Eu no carro, voltando de Ouro Branco, ouvindo “My Way” com meu avô e pensando, isso é a autobiografia dele. Minha tia, no karaokê, cantando “Escrito nas Estrelas”.

São memórias que não perdem cheiro nem som. Mas nem tudo é tão claro. Tem lembrança que ficou só em mim. Gente que foi embora sem saber que tinha música. E tudo bem. A música apenas… é.

Exceto “Encontros e Despedidas”, do Milton. Essa não é neutra. Essa é minha música de tristeza. Quando a vida afrouxa, ela toca. E nunca falha.

Também penso nas músicas que me disseram que sou eu. Gente que ouve Nelly Furtado, Frank Sinatra, Daft Punk, Ado ou Foo Fighters e pensa em mim. Isso me desmonta. Porque quando alguém diz “lembrei de você ouvindo isso”, eu só penso naquela frase do Nat King Cole:

“How could anyone so unforgettable, think that I was unforgettable too?”

“Como alguém tão inesquecível consegue pensar que eu sou inesquecível também?”

Essa, aliás, é a carinha da minha avó Aideé.

É difícil fechar esse texto. Porque ele é só uma nota solta num longo solo, como um CD arranhado que toca, falha, mas volta exatamente antes do refrão.

Ou talvez ele nem deva terminar, porque falar de música é falar das pessoas que amei, das que me amaram, das que passaram e das que ficaram, e das que eu vou amar, das que deixaram um som em mim e que eu sigo carregando. Como uma esquecida estação de trem onde uns chegam pra ficar e outros que vão para nunca mais.

Como um último acorde, um fio que termina invisível, mas ainda segura a colcha inteira. Como aquelas músicas dos anos 80 que, sem saber como acabar, voltavam pro refrão e iam sumindo…

O volume baixando…

até acabar.

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